Texto por Correio Braziliense – Pesquisadores constatam, pela primeira vez, sincronia neuronal entre terapeuta e paciente durante sessão de musicoterapia. A abordagem tem sido cada vez mais usada para complementar tratamentos diversos, dos médicos aos psicológicos.
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Nem sempre o remédio para patologias do corpo e da mente vem embalado em cápsulas. Parte dos rituais de cura de populações tradicionais em diversas regiões do globo, e indicada por filósofos gregos como remédio da alma, a música integra o arsenal de terapias disponíveis para o tratamento complementar das causas e dos sintomas de problemas diversos — desde transtornos do desenvolvimento a demências e cânceres.
Agora, um estudo britânico mostra os efeitos dessa abordagem no cérebro de terapeutas e pacientes. Segundo os autores, é a primeira vez que se comprova que, durante a prática, há uma sincronia neuronal entre ambos, mostrando que a música os conecta no processo de busca pelo objetivo comum — nesse caso, a resolução de uma patologia ou deficiência.
Jörg Fachner é professor de ciências da música, da saúde e do cérebro do Instituto de Pesquisa de Musicoterapia da Universidade Anglia Ruskin, em Cambridge. Há 20 anos, ele é musicoterapeuta, trabalhando especialmente com depressão e neurodegenerações, e também pesquisador da área, com foco nas mudanças neurais da consciência durante a percepção musical. Autor de diversos estudos sobre o tema, Fachner decidiu estudar o cérebro de terapeutas e pacientes durante uma sessão de um dos muitos métodos da musicoterapia. Para tanto, utilizou um procedimento chamado hiperescaneamento, que registra a atividade cerebral de duas pessoas simultaneamente.
Na sessão, uma terapeuta e uma paciente usaram toucas de encefalograma (EEG) contendo sensores que capturaram os sinais elétricos do cérebro. Ao mesmo tempo, a prática foi gravada em vídeo. Enquanto tocava uma música clássica, a paciente discorria sobre a doença grave de um familiar. Em determinado momento, o hiperescaneamento mostrou que a atividade cerebral da mulher havia sofrido uma alteração, passando de sentimentos negativos para positivos.
Pouco tempo depois, quando a terapeuta percebeu que o trabalho estava funcionando, o exame do cérebro registrou um padrão semelhante, indicando sintonia com a paciente. Em entrevistas individuais posteriores, tanto a especialista quanto a mulher admitiram que o momento apontado pelo EEG foi exatamente aquele em que elas sentiram que a sessão estava funcionando bem.
Emoções
Além disso, a equipe liderada por Fachner examinou a atividade cerebral das regiões do lobo frontal direito e esquerdo, onde as emoções negativas e positivas são processadas, respectivamente. O conjunto dessa análise, da gravação de vídeo e dos dados do hiperescaneamento, revelou, segundo o musicoterapeuta, que, de fato, há uma sincronia cerebral entre o profissional e o paciente. Ele explica que, embora isso seja perceptível para quem pratica a musicoterapia, não havia, até agora, um registro neurológico dessa sincronia, importante para que o terapeuta consiga identificar o sucesso da sessão em um tipo de tratamento no qual nem sempre a verbalização por parte do paciente é possível.
Esse é, aliás, um dos diferenciais da musicoterapia, diz Fachner. “A música é a linguagem das emoções. Então, a forma como você diz algo na música é diferente de quando se usa palavras. Se você está lidando com algo muito complexo, como uma emoção que não consegue expressar, pode ser que não consiga falar sobre ela. Mas pode ser que se expresse de maneira muito mais sensitiva em um instrumento de percussão, por exemplo, mostrando o que está dentro dela e que não se pode trazer para fora com palavras. Isso é o que faz da música uma ferramenta incrível para se expressar”, afirma Fachner, que publicou os resultados do estudo na revista Frontiers in Psychology.
Na avaliação do pesquisador, o trabalho vai ajudar a compreender melhor as interações do musicoterapeuta com o paciente. “Esse estudo é um marco na pesquisa da área. Os terapeutas reportam mudanças emocionais e conexões nas sessões, e conseguimos confirmar isso usando dados do cérebro.”
“A música é a linguagem das emoções (…) Isso é o que faz da música uma ferramenta incrível para se expressar” – Jörg Fachner, pesquisador do Instituto de Pesquisa de Musicoterapia da Universidade Anglia Ruskin
Três perguntas para:
FERNANDO LUZ, MUSICOTERAPEUTA E MEMBRO DA DIRETORIA DA ASSOCIAÇÃO DE MUSICOTERAPIA DO DF
Qual o princípio da musicoterapia?
Temos várias definições, que variam de acordo com a visão do terapeuta e a necessidade do paciente. Mas, para mim, a musicoterapia é a utilização da música e dos elementos da música, como o ritmo, a melodia, como um intermediário, algo com o que você conseguirá alcançar o seu paciente. Isso é usado em um processo terapêutico visando sempre os objetivos.
Quem mais se beneficia dessa abordagem?
Podemos ter sucesso em vários campos. Alguns exemplos seriam o sistema sensoriomotor, a comunicação, o controle ou as expressões das emoções, as relações interpessoais, a criatividade, as mudanças de comportamentos, a cognição, a percepção, as mudanças fisiológicas (respostas musculares, ondas cerebrais, respiração mais consciente, funções neurológicas) e psicofisiológicas. Também se observa relaxamento e atenuação nos níveis de dor e de tensão, entre outros.
O autor diz, no artigo, que o musicoterapeuta costuma compartilhar das emoções dos pacientes durante as sessões. O senhor acha importante que exista essa sincronia?
O musicoterapeuta partilha das emoções do paciente até certo ponto. Não é que ele vá sentir exatamente o que o paciente está sentindo, mas ele terá uma noção do que o paciente está passando. Isso se dá de várias formas; às vezes verbal, às vezes, não verbal. Quando não é de uma forma verbal, você consegue notar pelo andamento que o paciente está tocando o instrumento, pela intensidade do som, a melodia que ele escolhe… Assim, você consegue perceber relaxamento, ansiedade, preocupações… Isso tudo pela forma que a pessoa está tocando o instrumento. Quando falo instrumento, pode ser o próprio corpo, pode ser a percussão corporal ou a própria voz.
Melhora de habilidades sociais
Um dos campos de pesquisa que têm sido mais explorados na musicoterapia são os benefícios em potencial para o tratamento complementar do transtorno do espectro autista (TEA). Recentemente, pesquisadores da Universidade de Montreal e da Universidade de McGill, ambas no Canadá, demonstraram que a prática de atividades musicais, como cantar e tocar instrumentos, em sessões conduzidas por especialistas, pode aprimorar as habilidades sociais e comunicativas de crianças com autismo, melhorar a qualidade de vida familiar e aumentar a conectividade cerebral de importantes redes neuronais.
De acordo com Megha Sharda, pesquisadora da Universidade de Montreal e principal autora do estudo, publicado na revista Translational Psychiatry, a associação entre o TEA e a música data da primeira descrição do transtorno, mais de 70 anos atrás, quando se dizia que metade das pessoas com autismo tinha ouvido absoluto, algo que jamais se provou verdadeiro. Desde então, cientistas têm buscado compreender melhor a relação dessa condição e da música.
O estudo incluiu 51 crianças com autismo, de 6 a 12 anos, divididas em dois grupos: um contendo música e outro, não. Cada sessão durava 45 minutos. No primeiro caso, meninos e meninas eram incentivados a cantar e a tocar diferentes instrumentos, trabalhando com um terapeuta que interagia com eles. Já o grupo de controle foi conduzido pelo mesmo profissional, mas sem atividades musicais.
Depois de três meses, os pais das crianças que participaram da musicoterapia relataram melhoras significativas nas habilidades comunicativas e na qualidade de vida, acima do observado pelos familiares do segundo grupo. Dados obtidos por meio do exame de ressonância magnética funcional sugerem que o aprimoramento pode ser resultado de um aumento na conectividade entre as regiões auditiva e motora do cérebro, ao mesmo tempo em que se observou redução na conectividade das regiões auditiva e visual, comumente observadas em pessoas com autismo.
Resultado promissor
Segundo Sharda, a conectividade ideal entre essas regiões é crucial para integrar os estímulos sensoriais e essencial para a interação social. “Por exemplo, quando estamos nos comunicando com outra pessoa, precisamos prestar atenção ao que ela diz, planejar com antecedência o momento em que vamos falar e ignorar ruídos irrelevantes. Para pessoas com autismo, isso geralmente é um desafio”, ilustra. Segundo a pesquisadora, esse é o primeiro teste a mostrar que a musicoterapia para crianças em idade escolar com autismo pode levar a acréscimos tanto na comunicação quanto da conectividade cerebral. “São descobertas animadoras e muito promissoras para intervenções no autismo”, acredita.
A musicoterapeuta Isabella Campos da Paz, presidente da Associação de Musicoterapia do Distrito Federal, considera que as pesquisas estão ajudando a “validar e reforçar os benefícios que a musicoterapia e outras terapias complementares têm proporcionado às pessoas”. “Evidentemente que cada pessoa pode se beneficiar mais com um tipo de terapia do que outra. Não é necessário ler um artigo científico antes para saber se funciona ou não. Mas, para os céticos e/ou cartesianos, um estudo científico que usou escaneamento cerebral, por exemplo, pode ajudar a causar algum impacto positivo”, acredita.
Depoimento: um ano de grandes mudanças
“O Cauã apresentou atraso no desenvolvimento da linguagem. Procuramos a musicoterapia por indicação de uma família, cujo filho estava obtendo resultados surpreendentes no desenvolvimento da linguagem. Ele é uma criança musical. O pai toca e canta para ele, desde bebê. Ele sempre demonstrou interesse por música, seja ao assistir a vídeos ou musicais infantis. Nas primeiras sessões, ele mostrou interesse pelos instrumentos, especialmente, o xilofone, o tambor e o teclado.
Em um ano de musicoterapia, posso enumerar melhoras em diferentes aspectos do desenvolvimento: do ponto de vista da fala, ele melhorou a pronúncia das palavras, especialmente, aquelas com r, lh, s. Palavras que ele tinha dificuldade em pronunciar, atualmente, pronuncia sem dificuldades. Do ponto de vista da relação pensamento-linguagem, Cauã aprimorou a narrativa. Ele tem contado histórias com mais informações, considerando detalhes e relações entre pessoas e/ou objetos.
O aumento do vocabulário tem sido expressivo também. Na musicalidade, ele tem aprimorado a prosódia; usa a entonação para construir significados. Quanto à expressividade, tem cantado mais e músicas diferentes. Na socialização, a musicoterapia tem favorecido a aprendizagem do turno de fala e da capacidade de negociação e, do ponto de vista da criatividade, ele tem inventado músicas com mais frequência, relacionando fatos da vida cotidiana e também personagens e eventos da sua imaginação.
As mudanças foram observadas por todos. A capacidade de ele se comunicar aumentou porque está narrando melhor e argumentando, também. Atualmente, os avanços na linguagem têm aparecido em diferentes situações. Ele negocia seus interesses, por exemplo: ‘Titia, você pode me levar ao parque agora?!’, ou ainda, ‘Titia, você me dá dinheiro?!’ Eu disse: ‘para quê? Para comprar um cachorro!’ Aí eu disse: ‘você é pequeno para cuidar de cachorro’. Ele chegou perto de mim e mostrou que sua altura já era de criança grande. E tem aprimorado a argumentação: por exemplo, na brincadeira, ele disse que era o professor e que o professor que tem que organizar a atividade.
Na psicologia do desenvolvimento, entendemos que o processo de transformação social do ser humano acontece pelas interações sociais. Assim, quando uma pessoa tem alguma dificuldade, deficiência e/ou transtorno, sabemos que elas podem ser superadas por meio de intervenções deliberadamente organizadas para promover aprendizagem. Vigotsky é o autor da psicologia que nos ajuda a compreender esse processo. Assim, a musicoterapia, a equiterapia, a terapia ocupacional, o atendimento psicopedagógico, a psicoterapia e outras são intervenções importantes porque estimulam o processo de desenvolvimento de maneira integral. Essas terapias precisam, com certeza, serem mais acessíveis às pessoas no Brasil.”
Juliana Eugênia Caixeta, psicóloga, tia de Cauã Carpentier Caixeta, 5 anos.
Fonte original do texto: Correio Braziliense
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