Texto por UOL – Para mandar a dor de cabeça embora, Caetano. Para espantar a depressão, uma dose de Gil, outra de Milton. O estresse e o nervosismo eu aplacaria com Chico — vai passar, prometeria a bula do compositor.
Confira também no blog da Fine Sound: A música no desenvolvimento infantil
Minha farmácia doméstica incluiria outras tantas canções e eu as usaria sem medo de superdosagem. Mas não é bem assim que funciona a musicoterapia de raiz — a sua ciência tem outro compasso. Ela não atende necessariamente a pedidos. As notas musicais são instrumentos usados com critério por quem entende do assunto. Aliás, geralmente o senso comum desafina.
Na hora em que você está para explodir de nervoso, o pavio poderá ser aceso por aquela melodia calminha, quem diria. Aprendi isso há vários Carnavais, quando conheci a enfermeira Eliseth Leão, hoje professora do Instituto Israelita de Ensino e Pesquisa Albert Einstein, em São Paulo. A música está presente na vida dessa pesquisadora desde que, menina, ela começou a tocar violão.
Adulta, cursando mestrado na Universidade de São Paulo, Lis — como é conhecida até pelos seus alunos —, foi investigar se as melodias amenizariam dores. Já no doutorado, mergulhou nas imagens mentais formadas quando escutamos uma canção, porque elas também podem ter efeito terapêutico. E fechou com chave de ouro, em 2006, ao fazer um pós-doutorado na França e em Portugal para analisar como a música ajudaria na comunicação não verbal com idosos internados em instituições. “Com ela, o paciente sempre permite que você chegue mais perto”, diz, revelando um de seus achados.
Pois quando a conheci, esse era o tema. Lis tinha acabado de criar em outro hospital da capital paulista, o Samaritano, um projeto em que um grupo de enfermeiros se aproximava do leito dos doentes cantando um repertório meticulosamente estudado para baixar o volume do mal-estar, tanto físico quanto psicológico. Foi então que ela disparou a tal pergunta: “Na ansiedade, o que você coloca para tocar?”
Quem sabe, eu apelaria para a mansidão de João Gilberto, cairia nas ondas de Wave tocada por Tom… “Nada disso! Se você está agitada, precisa modular esse estado emocional colocando, primeiro, algo também agitado para ir conduzindo seu cérebro a um lugar mais sereno de canção em canção”, me ensinou. Se fizesse o contrário, seria o mesmo de sintonizar no Gonzaguinha entoando a falta de vergonha de ser feliz ao lado de alguém com depressão. Uma música alto astral para um deprimido seria, no mínimo, um desrespeito. Sem contar o risco enorme de o indivíduo tapar os ouvidos para se afundar de vez.
Nos quadros de tristeza profunda, o caminho é o inverso do anterior: abrir com uma melodia mais introspectiva para, aos poucos, introduzir outras estruturas musicais. O chamado modo menor — lá menor, si menor… — produz na massa cinzenta uma sensação de recolhimento, boa para o início da escuta. Já as notas musicais em modo maior tendem a provocar um sentimento de expansão. Os compositores clássicos dominavam esse conhecimento como ninguém — Mozart e Bach não atravessaram os tempos à toa. Antenados neles, os cientistas vão trabalhando, sabendo que o Mozart de um réquiem é para enterrar o mal-estar de uns e o Mozart de uma sinfonia número 40 é para animar outros.
Hoje, existem estudos apontando as melhores partituras para tratar o estresse de quem está passando por um procedimento hemodinâmico, que é diferente das para quem precisa entrar dentro da máquina de ressonância magnética. Aliás, o próprio hospital ligado ao Instituto onde Lis Leão atua, o Einstein, firmou uma parceria com o Spotify, o serviço de streaming de conteúdos sonoros, para disponibilizar playlists desenvolvidas para pessoas em situações diversas. E essa é uma tendência no mundo da saúde.
“O que define qual música será apresentada para um paciente é o seu potencial terapêutico, ou seja, como suas características ajudam a alcançar determinado objetivo. Se estou tratando alguém com Parkinson, eu provavelmente selecionarei uma marcha, que favorecerá coordenação dos movimentos”, explica Lis Leão. Isso não tem nada a ver com um mero apelo lúdico de sair dançando ou caminhando no ritmo. O grande ouvinte é o cérebro. É nas suas reações que a professora Lis e seus colegas prestam atenção.
Que a música mexe com a cabeça, bem, sabemos disso de berço: todos nós, um dia, caíamos no sono ao ouvir uma canção de ninar. “Os acalantos têm uma estrutura simples, repetitiva, quase hipnótica e, para completar, induzem quem canta a assumir um timbre mais afetivo”, explica Lis Leão. Aliás, os nana-nenéns soam desse jeito em absolutamente todas as culturas, apaziguando bebês chorões da África ao Japão, passando pelos nossos — e só com a melodia embalando os neurônios para não arregalarmos os olhos com letras ameaçando com uma Cuca prestes a nos pegar, é o que penso!
Aliás, os profissionais de saúde apelam para sons que são universais. Isto é, que tendem a produzir o mesmo efeito em qualquer um — e não em uma pessoa específica, porque ela gosta daquela faixa, nempara um grupo. Deus me livre, mas um funk para quem não é da turma frequentadora do baile pode ser a pior experiência de toda uma vida — falo só por mim, deixo claro.
Não importa o gosto musical, existe um fenômeno denominado condicionamento acústico cerebral. Isto é, a ciência demonstra que o cérebro tende a sincronizar suas ondas com os estímulos sonoros externos. “Da mesma forma como ele se sincroniza com os estímulos visuais”, compara Lis. “Sabemos que precisamos baixar a luminosidade para facilitar o adormecer.”
Toda música, nesse sentido, é poderosa, modulando as ondas das mais diversas regiões do cérebro e afetando os seus dois hemisférios. Envolve, claro, as áreas da audição e as da linguagem— estas, principalmente quando há letra. Se a imaginação toma conta, as áreas visuais não ficam de fora. Sem contar o tálamo, localizado mais no miolo da massa cinzenta, processando o ritmo para então reverberá-lo na coordenação motora — eis o porquê da marcha no caso do Parkinson, favorecendo o controle dos movimentos com sua cadência.
Mas, sem dúvida, uma das regiões mais afetadas é a do sistema límbico, senhora absoluta das emoções. Ela é impactada pelo gosto e pelo não gosto, pelo prazer e pelo desprazer, pela alegria ou pela introspecção dos acordes. E reage orquestrando uma série de neurotransmissores.
“Se a música induz à produção da noradrenalina, eu tenho mais atenção”, descreve Lis Leão. “Já se leva o organismo a um relaxamento importante, gera endorfinas, que são nossos analgésicos naturais.” Certa vez, Lis Leão bolou uma trilha sonora para o alívio de dores de cabeça. No caso, tudo o que ela menos queria era um timbre forte e um arranjo com muitas batidas. A música que coloca o cérebro em estado de relaxamento e produz endorfinas tem de 40 a 60 beats ou batidas por minuto.
Além do dominar harmonia, cifras e tudo mais, quem trabalha com musicoterapia pra valer costuma evitar, por segurança, canções velhas conhecidas dos pacientes. Existe o que os especialistas rotulam de eventos extra-musicais. A canção que tocou no casamento será linda enquanto o casal for feliz, mas poderá sair completamente do tom desejado, do ponto de vista terapêutico, se essa felicidade por acaso não durou para sempre. Ou seja, as pessoas sempre fazem associações com aquilo que viveram enquanto escutavam determinada composição. E aí aquele Chico pode fazê-las mudar de calçada quando aparece uma flor.
As letras, reforçando imagens e recordações diversas, não são exatamente proibidas, mas podem se tornar um dificultador, se conduzem a cabeça na contramão do efeito esperado pela melodia. Às vezes, porém, elas até ajudam. Por exemplo, quando se quer trabalhar a memória. Qualquer professor de cursinho sabe disso por instinto, quando coloca aquela fórmula impossível de entrar na cabeça no lugar de um refrão popular qualquer. Aliás, quem aqui nunca teve a experiência de ouvir uma música péssima que grudou feito chiclete nas orelhas, ecoando o dia inteiro?
O impacto da música nos centros de memorização é tão forte que há quem especule que a capacidade de recordar melodias é preservada até mesmo no Alzheimer. O mais certo é que uma boa sinfonia é a última coisa que se desliga no apagão das lembranças. Assim, até na dor do esquecimento sempre teremos a música. Sempre.
Fonte original do texto: Uol
Confira também no blog da Fine Sound: Som ambiente, quem pode investir?